Tenho chamado a atenção para a hipótese de a ruptura entre Freud e Jung ter sido basicamente emocional, causada, sobretudo pelo complexo paterno mal resolvido de ambos. Isto mutilou a reunião da criatividade destes dois gênios no desenvolvimento da psicologia moderna, com conseqüências lastimáveis (Byington, 2005). A Psicanálise e a Psicologia Analítica herdaram e repassaram a seus seguidores uma aparente diferença objetiva entre seus postulados teóricos, que manteve dissociados e limitados seus principais conceitos. Dentre estes, ressalto a formação do Ego a partir das relações primárias, descrita por Freud, e o processo de individuação, concebido por Jung. A separação das duas disciplinas fundamentada nos conceitos de inconsciente pessoal e inconsciente coletivo foi uma grande falácia, pois hoje sabemos que tudo na Psique, inclusive o Ego, possui um componente arquetípico.
A reunião operacional destas duas escolas através do quatérnio primário me parece ser o caminho da elaboração e do resgate de parte importante desta dissociação teórica. Espero que a troca das cartas de Freud e Jung, realizada por Ernst Freud e Franz Jung, tenha sido um passo simbólico de uma aproximação teórica que requer uma imensa elaboração. Substituir simplesmente a troca das hostilidades por uma cordialidade politicamente correta, e deixar as teorias como estão, seria, a meu ver, uma insensatez a ser evitada.
Continuando a aproximação e interação entre a Psicanálise e a Psicologia Analítica a partir de um referencial simbólico e arquetípico, abordarei o Complexo de Édipo dentro do conceito do quatérnio primário, que engloba o relacionamento da mãe, do pai, o vínculo entre eles e as reações da criança a eles para formar a identidade do Ego e do Outro no Self Cultural, no Self Familiar e no Self da criança desde o início da vida.
Considero a descoberta da formação do Ego a partir das relações primárias uma das maiores, senão a maior das descobertas de Freud. No entanto, acredito que a subordinação das relações primárias ao Complexo de Édipo, como foi proposto por Freud, introduziu uma redução, uma patologização e uma unilateralidade no desenvolvimento psicológico, que deformaram a Psicologia e a Pedagogia modernas de maneira catastrófica na teoria e na prática. Freud descobriu e nomeou genialmente o Complexo de Édipo em si mesmo, mas, ao generalizá-lo para as crianças normais, formulou um absurdo, que só se justifica se o compreendermos como uma defesa de negação da sua própria neurose. O Mito de Édipo é um mito da psicopatia e da psicose na estrutura familiar e, por isso, não pode servir de paradigma para o desenvolvimento normal. Desta maneira, descrevo o Complexo de Édipo como uma variante defensiva do quatérnio primário normal.
Além da patologização e da generalização, o principal erro de Freud na formulação do Complexo de Édipo foi a unilateralidade, realizada ao excluir os pais e a cultura e ao centralizar as relações primárias nas reações da criança. O oráculo nas culturas é a manifestação do Arquétipo Central e, no caso do Oráculo de Delphos, a profecia ocorreu através do padrão parricida-filicida inerente à dominância patriarcal vigente na cultura grega. O oráculo vaticinou o parricídio, e Laio e Jocasta empreenderam a tentativa de filicídio.
A principal conseqüência da unilateralidade na centralização do Complexo de Édipo na personalidade da criança foi a dificuldade de se estudar o papel das emoções dos adultos na formação da identidade. Ela é da maior importância para se reconhecer as emoções positivas e negativas dos pais e proteger as crianças destas últimas. De fato, é assustador o número de casos de assédio sexual (Masson,1984), e de violência dos pais com os filhos (Parrish, 1996). Estima-se que no Brasil ocorram quatrocentos mil casos de SIBE por ano (Síndrome do Bebê Espancado), sendo quarenta mil com lesões graves e quatro mil mortais (Teixeira, 2008).
O Arquétipo Central e o Self
Jung descreveu o Self como o principal dos arquétipos, e frisou que o quatérnio é uma das grandes expressões de sua abrangência da totalidade. Pelo fato de Jung ter descrito o Self também para incluir o todo da personalidade, como o Ego, a Sombra e os demais arquétipos, escolhi a denominação de Arquétipo Central para o principal dos arquétipos, seguindo Perry (1974) e o próprio Jung (1912). Assim sendo, descrevi o quatérnio primário como a manifestação quaternária do Arquétipo Central na estruturação simbólica da consciência através das relações primárias dentro do Self.
Jung conceituou o processo de individuação na segunda metade da vida (Jung, 1916) e Freud descreveu o desenvolvimento da libido principalmente até a puberdade. O início da aproximação teórica entre essas duas abordagens, que começaram em pólos opostos, coube aos seguidores de Jung, principalmente Frances Wickes (1927), Jolande Jacobi (1965), Michael Fordham (1944) e Erich Neumann (1949), que consideraram o enraizamento arquetípico do Ego desde o início da vida. Este fato tornou sem efeito a polaridade pessoal-arquetípico que havia sido usada por Jung e seus seguidores como a grande trincheira que separaria a Psicanálise da Psicologia Analítica. Se o Ego é formado pelos arquétipos, tudo na Psique é arquetípico e a polaridade pessoal-arquetípico não tem mais razão de ser. Desde 1980 venho descrevendo em artigos e livros as posições arquetípicas da consciência, mostrando que o funcionamento da polaridade Ego-Outro na consciência nunca pode deixar de ser arquetípico.
Fordham foi quem primeiro associou o Arquétipo Central à formação do Ego desde o início da vida, levado pelo fato de crianças de tenra idade fazerem garatujas circulares em forma de mandala. No entanto, ele manteve o esquema pré-edípico de Melanie Klein e edípico de Freud para o desenvolvimento do Ego (Fordham, 1944), praticando o mesmo redutivismo, patologização e unilateralidade das relações primárias que eles, o que limita e deforma sua teoria de desenvolvimento psicológico.
Seguindo Bachofen, Neumann assinalou a preceção do Arquétipo Matriarcal sobre o Arquétipo Patriarcal na história (1949) e na formação do Ego desde o início da vida (1955), mas reduziu o matriarcal à Grande Mãe e ao feminino, e a díada primária à relação criança-mãe. O fato de tradicionalmente a contenção e o cuidado (holding e caring, de Winnicott) serem exercidos por figuras femininas maternas levou os estudiosos das relações primárias a descrever uma relação criança-mãe pré-edípica. Assim, estabeleceu-se que a criança no início da vida era capaz somente de uma relação diádica com a cuidadora materna, a qual seria seguida de uma relação triádica edípica com a entrada do pai no Complexo de Édipo. Desta maneira, a figura do pai foi identificada com o Arquétipo Patriarcal e excluída da relação primária, coordenada pelo Arquétipo Matriarcal. Referendou-se, assim, a figura lastimável do pai distante da criança no aconchego, no brincar, na ternura e nos cuidados primários, reduzida a provedor e impositor da ordem e do castigo. Desta maneira, a deformação da figura do pai na formação da identidade primária foi chancelada como normal pela Psicologia, apesar de suas conseqüências machistas terem sido tão prejudiciais para a formação da identidade do homem e da mulher e, sobretudo, para a sua relação conjugal adulta.
Não querendo dizer que a polaridade criança-seio é totalmente pré-edípica, Melanie Klein afirmou que a relação com o seio é, em realidade, triádica e que o mamilo é o terceiro elemento, representando o futuro pênis do pai. No entanto, essa noção foi pouco convincente e as relações primárias passaram a ser reduzidas à vivência diádica criança-mãe (Klein, 1959).
A Presença do Pai desde o Início da Vida do Bebê
A relação triádica, considerada edípica, foi tradicionalmente descrita a partir da entrada do pai, que traria a formação do superego e da lei e que afastaria a criança da relação incestuosa com a mãe.
Muitos autores descreveram a formação do Ego a partir da díada criança-mãe, como, por exemplo, Anna Freud (1927), Melanie Klein (1959), Fairbairn (1952), Fordham (1969), Neumann (1955), Winnicott (1964), Jacobson (1964), Bowlby (1969), Mahler (1975), Stern (1985), e Jacoby (1996).
Todos estes autores reduziram a relação primária à díada criança-mãe e, ao que eu saiba, somente Dorothy Dinnerstein (1976) afirmou que o pai também deveria fazer parte da relação primária, sem o que seria muito difícil para a criança desenvolver, na vida adulta, uma relação dialética igualitária entre o homem e a mulher.
Pelo fato de estudar a busca da relação dialética de alteridade entre o homem e a mulher e de concordar enfaticamente com Dorothy Dinnerstein, busquei descrever a participação do pai junto com a díada criança-mãe na formação do Ego desde o início da vida, e constatei que a maior dificuldade para fazê-lo é devida ao relacionamento inicial da criança ser exclusivamente diádico.
Ao seguir Neumann e atribuir a coordenação da relação primária ao Arquétipo Matriarcal, descrevi a posição insular binária, ou seja, diádica, da relação Ego-Outro na consciência como expressão deste arquétipo. No entanto, não segui Neumann na identificação do Arquétipo Matriarcal à Grande Mãe, pois nele incluí tanto o feminino quanto o masculino, tanto o homem quanto a mulher e tanto o pai quanto a mãe.
Sabemos que a díada primária criança-mãe pode abranger figuras maternas variadas, como a madrasta, a avó, a madrinha, tias, babás, irmãs mais velhas e outras. Observando jovens casais modernos, percebi que as relações primárias diádicas do bebê podem incluir também o pai e as figuras paternas lado a lado com as relações
diáticas com as figuras maternas. Então, pude concluir que, se isso não acontecia antes, era porque a identidade patriarcal tradicional machista do homem o impedia, na teoria e na prática.
Os padrões arquetípicos podem ser dominantes em fases diferentes da vida e da história. Não há dúvida que o padrão patriarcal tornou-se dominante de forma crescente na civilização. Sua posição característica da relação Ego-Outro na consciência é a posição polarizada (triádica) que reúne os opostos de maneira desigual, sendo um oposto superior ao outro (Byington, 2004) Foi esta posição que coordenou a identidade do homem e da mulher durante mais de dez mil anos. Assim, na consciência coletiva de dominância patriarcal, estabeleceu-se “cientificamente” que a vocação constitucional da mulher era a dedicação aos afazeres do lar e a do homem, o desempenho do poder social e econômico. A conseqüência desta mentalidade patriarcal na Psicologia foi a noção tomada como fato de que a díada primária seria exclusiva da criança com a mãe ou com qualquer cuidadora que exercesse a maternagem. A outra conseqüência dessa mentalidade é que a figura paterna somente se tornaria ativa na relação triádica para exercer a autoridade e a separação incestuosa entre mãe e filho.
A conceituação de Jung dos Arquétipos da Anima, como o feminino na personalidade do homem e do Animus, como o masculino na personalidade da mulher dentro do processo de individuação comum aos dois gêneros, veio revolucionar a identidade do homem e da mulher na Psicologia. Dentro dessa perspectiva, os papéis referentes à identidade deles não estão predeterminados, posto que se revelam pela vocação de cada um durante a vida. Com isso, invalidaram-se os papéis profissionais e aqueles desempenhados no lar, que seriam características exclusivas de cada gênero, e o homem e a mulher puderam romper os grilhões dos preconceitos tradicionais e seguir dentro e fora do lar o chamado da sua vocação (Byington, 1986). Assim, começamos a ter mulheres na carreira militar, econômica, médica, administrativa e política, e homens no exercício das prendas domésticas, como a culinária, a decoração, a estética e também a enfermagem, o ballet e até mesmo prestando os primeiros cuidados ao bebê.
Descrevi este padrão pós-patriarcal na identidade do homem e da mulher como o padrão de alteridade (Byington, 1980), no qual a polaridade Ego-Outro e todos os demais opostos, se relacionam de forma dialética com os mesmos direitos de expressão (Byington, 1986). Com o tempo, dei-me conta que o padrão de alteridade na Consciência corresponde a um arquétipo que chamei de Arquétipo da Alteridade, que engloba os arquétipos da Anima e do Animus (Byington, 1992). Buscando a constelação mítica desse arquétipo na história, descobri que ele corresponde ao Mito Cristão no Ocidente e ao Mito do Buda no Oriente, que pregam igualmente a compaixão nos relacionamentos entre as polaridades Ego-Outro e entre todos os opostos de um modo geral, inclusive homem – mulher e pai – mãe (Byington, 1983).
Percebemos, assim, que foi a transformação pós-patriarcal da identidade do homem e da mulher pelo Arquétipo de Alteridade, que os levou a uma abertura
democrática e amorosa para desempenhar qualquer um dos papéis tradicionalmente atribuídos exclusivamente a um e ao outro (Byington, 1992), inclusive o de cuidador de crianças desde a mais tenra idade.
A Polaridade Ego-Outro na Consciência
Concebo o Ego como o conjunto das representações do sujeito e os Outros como o conjunto das representações do não-Ego. A partir da noção de que as identidades do Ego e do Outro são formadas pelo mesmo processo de elaboração simbólica coordenado pelos quatro arquétipos regentes, que operam à volta do Arquétipo Central, conceituei que não somente o Ego, mas sim a polaridade Ego-Outro ocupa o centro da
Consciência e da Sombra. Nesse caso, a identidade do Outro se forma e se transforma durante toda a vida da mesma maneira que a identidade do Ego (Byington, 2004)
A formação da identidade do Ego de um homem, por exemplo, é influenciada por todos os homens que conheceu, a começar por seu pai; e a identidade do Outro mulher, neste mesmo homem, é matizada por todas as mulheres que conheceu, a começar por sua mãe. De fato, é impressionante como, com freqüência, um homem terá as imagens do Arquétipo da Anima expressos com características de sua mãe e como estas o influenciarão para buscar uma relação conjugal com uma mulher parecida com ela ou aversiva a ela. Da mesma forma, é comum o Animus influenciar a mulher em sua busca de um cônjuge parecido com seu pai ou aversivo a ele.
O Quatérnio Primário
A inclusão da figura do pai nas relações primárias diádicas do bebê permite a conceituação do quatérnio primário, que inclui os significados da figura da mãe ou suas substitutas (complexo materno), da figura do pai ou seus substitutos (complexo paterno), do vínculo entre eles e das reações da criança. Como se vê no livro de Frances Wickes, escrito em 1927 e prefaciado por Jung, ela e ele deram grande importância à influência do inconsciente dos pais na personalidade da criança. Assim, o quatérnio primário é a expressão da função estruturante totalizadora do Arquétipo Central na formação da identidade do Ego e do Outro na Consciência e na Sombra o que influenciará de maneira fundamental todo o processo de individuação.
Estamos tão condicionados pelo viés edípico da Psicanálise, que temos dificuldade de perceber que muito antes de a criança reagir com a atração ou repulsão aos pais, ela se identifica com aspectos de um e de outro, com o vínculo entre eles e com suas reações a eles através da sincronicidade, de maneira imprevisível e em graus muito variáveis. É muito difícil perceber o quanto as identificações primárias afetam, em cada caso, a identidade sexual, mas é importante nos darmos conta que muitas das características adquiridas nas relações primárias independem do gênero. Assim sendo, o menino pode se identificar com muitas qualidades de sua mãe sem feminilizar-se, e a menina, de seu pai, sem masculinizar-se.
Um homem de trinta e dois anos apresenta como traços de personalidade muita assertividade, integridade e grande capacidade de realização, os quais correspondem muito à personalidade de sua mãe, em contraposição à fragilidade sonhadora, delicada e passiva de seu pai. Ele é heterossexual e não apresenta nenhuma feminilização. Vemos aqui uma identificação dominante de um homem com características de sua mãe, mas que não afetou sua identidade sexual.
Um homem de vinte e oito anos é homossexual, delicado, sensível, muito romântico e tem alguns maneirismos femininos. Sente atração por homens, mas não lhe desagradam as mulheres. Sente uma total sintonia com sua mãe, que é sensível e afetiva e uma grande aversão a seu pai, que é agressivo, machista e rude. Os pais se separaram quando ele tinha oito anos. Ele busca a posição passiva na relação homossexual e, apesar de ter ereção, afirma que seu pênis não é ativo na relação sexual. Vejo aqui uma identificação dominante dele com características de sua mãe, que incluiu, pelo menos parcialmente, sua identidade sexual. É provável que estas características da identidade sexual tenham se formado durante a fase anal do desenvolvimento, descrita por Freud.
Uma mulher de quarenta anos tornou-se uma executiva de muito sucesso e casou-se com um homem frágil e dependente, que necessitou muito de sua ajuda para seguir uma profissão. Sua mãe, por sua vez, era também muito passiva e dependente, o que mostra claramente a dominância da identificação com o pai nas relações primárias, pois ele é também um executivo assertivo e bem sucedido. Apesar desta clara dominância da identificação com seu pai, ela, como sua mãe, é muito feminina e não tem o menor traço de masculinização.
Para mapearmos a personalidade através do quatérnio primário, devemos listar características semelhantes ao pai, à mãe e às figuras a eles relacionadas. A seguir, devemos também enumerar os aspectos que apreendemos do vínculo entre eles e que reproduzimos nas relações com as pessoas, as coisas, a natureza e com o próprio corpo.
importante observar que muitas das identificações primárias podem ser defensivas, pois ocorrem em função de fixações e defesas inerentes aos complexos parentais ou ao vínculo entre eles, ou ainda ao significado atribuído pela criança a suas próprias reações a eles. Assim, na lista que fazemos das características semelhantes aos pais, devemos assinalar as que operam normalmente na personalidade e as que se expressam através das fixações e defesas na Sombra. Destacamos assim, que as características que formam a identidade a partir do quatérnio primário o fazem por identificação e também por reação aversiva da criança aos pais. Muitas das reações aversivas da criança são dirigidas à Sombra dos pais, mas isso não significa que, mesmo assim, essas características não possam se tornar parte da Sombra da criança.
Um homem de trinta e sete anos amou muito seu pai, mas, com o tempo, passou a ter horror à crítica, à agressividade e às reações de descontrole emocional dele. Este homem era uma pessoa muito afetiva, sensível e de grande capacidade de compaixão, mas, para seu desgosto, tinha um complexo fixado que, se constelado, possuía a personalidade com crises de intolerância, crítica intempestiva e descontrole emocional, que eram a cópia do lado negativo de seu pai.
As reações edípicas descritas por Freud, que certamente existem com grande freqüência, quando acentuadas, são aqui vistas como variantes, na maioria dos casos defensivas, isto é, patológicas, do quatérnio primário.
Freud descreveu a formação da identidade através das tendências incestuosa e parricida presentes no Complexo de Édipo. Isto significa que para ele a identidade é formada fundamentalmente pelas reações da criança aos pais. A descrição das inúmeras funções estruturantes contidas no quatérnio primário postula, no entanto, que a formação da identidade do Ego e do Outro se dá principalmente pela função estruturante da imitação, que abrange a identificação projetiva descrita por Melanie Klein, por parte da criança e dos pais. De fato, percebemos muitas vezes que a criança pode desempenhar grandemente na sua personalidade, as projeções de seus pais.
Estas considerações nos remetem ao fenômeno do “imprint filial”, fartamente estudado na Etolologia e pouco aproveitado na Psicologia, que é a forma mais primária da função estruturante da imitação, pois ocorre predominantemente de maneira inconsciente. Ele foi descoberto no século XIX pelo biólogo amador Douglas Spalding e muito popularizado pelo trabalho com gansos do zoólogo Konrad Lorenz, ganhador do prêmio Nobel. Konrad demonstrou que essas aves, nascidas de ovos incubados, imprimem na sua identidade nas primeiras 36 horas de vida a imagem de praticamente qualquer objeto associado ao cuidador, até mesmo as imagens de suas botas.
O imprint filial está cada vez mais sendo estudado no desenvolvimento da criança. Um grupo de pesquisadores chegou a atribuir o início do aprendizado ao imprint filial, quando o feto começa a reconhecer a voz dos pais (Kisilevski et al, 2003). O componente do imprint filial é uma das funções estruturantes da maior importância do quatérnio primário. Sua expressão arquetípica funciona durante toda a vida enraizada principalmente na função estruturante imitativa coordenada pelo Arquétipo Matriarcal. A descoberta do neurônio espelho veio corroborar neurologicamente esse fenômeno.
Todo arquétipo é virtual e necessita dos símbolos para humanizar-se. Desta maneira, podemos nos dar conta que o Arquétipo Central, desde a concepção do bebê, está imbuído de uma fortíssima avidez por todos os fenômenos para estruturar a Consciência. Podemos até mesmo dizer que os símbolos e as funções estruturantes são coordenadas pela função transcendente da imaginação para serem o
combustível do Arquétipo Central. Essa voracidade extraordinária é proporcional ao potencial através do qual o Arquétipo Central coordena o processo de individuação. Nesse sentido, o imprint filial, que se realiza em sua maior parte inconscientemente, faz parte do imediatismo, com o qual o Arquétipo Central coordena o movimento mais básico do relacionamento estruturante entre o sujeito e o seu entorno através da identificação.
O Quatérnio Primário, o Efeito Westermarck e o Incesto
O antropólogo Edward Westermarck (1921) contrariou a visão de Freud, de que o perverso polimorfo é naturalmente incestuoso, ao descrever a atração sexual menor entre pessoas da mesma comunidade.
Aquilo que é hoje conhecido como o efeito Westermarck postula que jovens criados juntos têm muito menos tendência a se sentirem atraídos sexualmente que aqueles criados separados. Segundo ele, o tabu de incesto vem estabelecer uma tendência natural já existente no ser humano.
Dentro das características do imprint presentes no quatérnio primário, podemos levantar a hipótese de que o efeito Westermarck ocorra pelo fato de a criança formar muitas características de sua identidade, inclusive identificações com seu pai e sua mãe, antes ou independentemente de desenvolver sua identidade sexual. De fato, as relações primárias são inicialmente assexuadas, e este imprint condiciona o relacionamento íntimo assexuado na vida adulta.
O Quatérnio Primário e a Teoria da Metempsicose ou Reencarnação
O quatérnio primário influencia de maneira fundamental o nosso processo de individuação. As características saudáveis integradas a partir dele na identidade são a base para o nosso desenvolvimento produtivo na maturidade. Já suas características fixadas e defensivas irão alicerçar a Sombra, desde o início da vida.
A introjeção psicodinâmica das características de nossos pais através do quatérnio primário somada à nossa herança genética é, possivelmente, a base psicológica da doutrina da reencarnação e do Karma, no Hinduísmo equivalentes à teoria do processo de individuação. Podemos assim compreender psicologicamente que, ao formarmos nossa identidade, nos tornamos simultaneamente herdeiros de um longo passado histórico e corresponsáveis pelo desenvolvimento futuro da humanidade como parte do nosso processo de individuação. Assim sendo, o quatérnio primário proporciona o encontro do passado com o potencial do futuro durante a formação da identidade na infância.
O Quatérnio Primário e o Quatérnio Conjugal
O quatérnio primário é o principal fator estruturante nas três primeiras fases da vida, ou seja, na fase intra-uterina, na primeira e na segunda infância. A partir da puberdade, com a ativação das glândulas sexuais e o extraordinário impulso erótico-afetivo-existencial em direção a um parceiro, o quatérnio primário sofre um grande impacto transformador pela ativação do quatérnio conjugal.
Neste impacto, o Arquétipo da Conjunção, que é comum aos dois quatérnios, passa por uma grande mudança. Enquanto que no quatérnio primário os dois grandes Outros que compõem o quatérnio são os complexos parentais, no quatérnio conjugal a grande polaridade será entre dois opostos na heterossexualidade ou dois semelhantes na homossexualidade. Ao invés da associação entre os complexos materno e paterno, regidos principalmente pelos Arquétipos Matriarcal e Patriarcal, e pelos arquétipos do Animus e do Anima, respectivamente, da mãe e do pai, teremos agora o encontro da Anima ou do Animus do adulto, coordenados pelo Arquétipo da Alteridade. Ao formular empiricamente o encontro entre estes dois quatérnios, Freud observou que o casamento reúne sempre seis pessoas, pois os pais dos noivos são parte inseparável da conjugalidade.
A capacidade estruturante do quatérnio conjugal diferenciará muito a identidade dos componentes introjetados a partir do quatérnio primário e acrescentará a eles muito do que lhes falta para a busca da individualidade profunda e da realização do potencial de totalidade do Arquétipo Central. É importante, também, saber que os Arquétipos da Anima ou do Animus da criança, ainda que muito associados às imagens parentais, podem se manifestar desde cedo em suas reações dentro do quatérnio primário.
O quatérnio conjugal interage o Arquétipo da Anima e a Sombra na personalidade do homem com o Arquétipo do Animus e a Sombra na personalidade da mulher. Esta interação ocorre de maneira dialética e quaternária, regida pelo Arquétipo da
Alteridade. Além dos gêneros, o quatérnio conjugal pode abranger, também, a relação da Anima de um homem com a sua vocação profissional e todos os demais relacionamentos da vida adulta, inclusive com a Anima de outro homem num processo homossexual. O mesmo ocorre com o Animus de uma mulher.
Conclusão
Para terminar este artigo, quero enfatizar a importância do quatérnio primário, que reúne o processo de individuação dos pais e seu vínculo junto com as ações e reações da criança na formação da sua personalidade. Quero também ressaltar que uma grande diferenciação existencial ocorrerá na personalidade com o impacto do quatérnio conjugal, e será ultimada na elaboração da morte através do quatérnio cósmico.
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