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Freud e Jung: Dois Opostos que Formam um Todo

Carlos Amadeu Botelho Byington
Escrito por Carlos Amadeu Botelho Byington em 26 de outubro de 2017
Freud e Jung: Dois Opostos que Formam um Todo
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Ao comemorarmos este ano o centenário do nascimento de Carl Gustav Jung, são transcorridos 61 anos da sua renúncia à presidência da Sociedade Psicanalítica Internacional e sua ruptura definitiva com Freud. Após a publicação no ano passado das 358 cartas de sua correspondência com Freud, reabriu-se nova oportunidade de tentar a visualização histórica do seu relacionamento pessoal e de suas obras.

A Sociedade Psicanalítica Internacional que deu prosseguimento à obra de Freud, realizará seu 29º Congresso em Londres dentro de semanas e a Sociedade Internacional de Psicologia Analítica que continua o desenvolvimento da obra de Jung vem de realizar seu último congresso internacional em agosto do ano passado e por coincidência também em Londres. São duas sociedades internacionais de psicologia profunda com sociedades nacionais em vários países. Como é possível que dois pesquisadores dentro do método científico cheguem a resultados tão diversos? Serão suas obras tão diferentes que os analistas que continuam a desenvolvê-las necessitam até de caminhos separados?

Para quem como eu procura se situar diante da psicologia profunda como um todo, a resposta é sim e não. Sim porque as obras são realmente muito diferentes e não porque elas não deveriam estar em caminhos separados e sim num mesmo caminho em permanente relacionamento dialético exatamente por causa de suas diferenças.

  • que, a grande diferença das duas obras não é casual. Pelo contrário, é uma diferença sistemática onde cada uma é coerente na sua unilateralidade. Acontece que todo fenômeno vital é em sua natureza dialético, pois engloba sempre pólos opostos de cuja interação resulta toda e qualquer transformação. No ocidente devemos esta descoberta a Heráclito e no oriente é tão conhecida que dizem os sábios ter sido ela descoberta pelo próprio tempo.

Como não poderia deixar de ser, a mente humana, no fluir de suas emoções, está permanentemente num processo criativo de teses que encontram antíteses para evoluir através de sínteses. Isto quer dizer que a mente humana descobriu o processo dialético fora de si porque cria seu próprio desenvolvimento através desse processo.

As obras de Freud e Jung se opõem principalmente na medida em que ao desenvolverem a fenomenologia dos acontecimentos psíquicos fizeram-no sob determinado aspecto que de um modo geral não exclui o outro e sim o complementa.

O problema é que um pouco reconheceu desta complementaridade na obra do outro. Seu relacionamento pessoal foi muito íntimo, a ponto de Freud ter sentido Jung durante 7 anos como seu colaborador dileto e príncipe herdeiro e Jung venerar em Freud o pai espiritual que não teve. A ruptura foi proporcionalmente violenta e provavelmente muito dolorosa para ambos. Até aquele ponto as obras se entremeavam, tendo Freud acompanhado Jung na sua valorização do mito, do folclore e da psicologia da pré-história, assim como Jung seguia Freud de perto nas descobertas do inconsciente dinâmico, dos sonhos, da sexualidade infantil e na descrição das ansiedades básicas da criança no desenvolvimento da personalidade. É importante notar que estamos nos referindo a dois gigantes de criatividade, cuja obra publicada se estende por mais de cinqüenta anos na vida de cada um. Jung sendo vinte anos mais moço pôde por isso analisar mais a obra de Freud que a sua, mas de um modo geral, após a separação, Freud passou a ver em Jung quase um ex-cientista que adotara o ocultismo e Jung por sua vez via Freud como um gênio castrado condenado à amargura pelo redutivismo da psicologia que ele mesmo criara.

Contudo, ressurge a vida e junto com ela a dialética. Em 1970 Franz Jung viajou de Zurique a Londres e visitou Ernst Freud, que levantou da cama, com insuficiência cardíaca, para recebê-lo. Dez dias depois ele escrevia: “Jung, de quem eu gostei muito, visitou-me e nós não somente trocamos as cartas de nossos pais, mas da maneira mais fácil e amistosa possível, fizemos planos para a breve publicação da sua correspondência” (Freud Jung Letters, Ed. William Mc Guire, 1974 pg XXXIV). E assim foi que os dois cientistas dissidentes em meio à intolerância a ao ressentimento, foram na maior cordialidade reunidos por seus próprios filhos e pelo menos na sua correspondência já estão outra vez criando e brigando lado a lado.

As duas correntes, porém continuam separadas apesar de começarem a se reaproximar pouco a pouco. Aconteceu comigo um fato que ilustra bem isso. A Revista Planeta decidiu publicar um número original em português para comemorar o Centenário de Jung e o Dr. Leon Bonaventure de São Paulo pediu-me há três meses para colaborar com um artigo sobre Freud e Jung. Ao ler a correspondência dos dois enquanto preparava o artigo, tive a nítida sensação de que a ruptura emocional havia desencadeado a separação ideológica e não o oposto. Senti claramente o ferimento que isso havia sido para o movimento psicanalítico e a necessidade dele ser reparado. Fiquei agradavelmente surpreso quando ao ler a revisão da correspondência feita pelo Presidente da Associação Junguiana de Londres, Michael Fordham, no último número da Revista de Psicologia Analítica de Londres, ali encontrei opinião semelhante (Journal of Analytical Psychology – Jan 1975 vol 20 nº 1 pg 79). Só não podia imaginar que esta surpresa se repetiria.

Segunda-feira desta semana, recebi o primeiro número deste ano da Revista Internacional de Psicanálise que contém os trabalhos a serem apresentados agora em Julho no 29º Congresso Internacional. Um dos trabalhos é do Psicanalista de Los Angeles Leo Rangell analisando o processo de evolução na Psicanálise e o problema das dissidências. Ao referir-se às carta de Freud-Jung, escreveu: “enquanto lia este extraordinário documento, não somente de colaboração científica mas de relação humana, a seguinte tese formou-se em minha mente: que as suas diferenças ideológicas não causaram sua separação mas que uma cisão causou sua divergência ideológica”. E mais adiante… “O filho ao separar-se do pai separou-se também de sua herança. ambos pagaram um alto preço”.(Intern. Journal of Psychoanalysis – 1975 vol 56 nº 1 pg 87).

Vemos assim, como os continuadores de Freud e Jung estão começando a elaborar a divisão, o que nos permite prever a futura revisão dialética das duas obras.

  • evidente que Freud e Jung não perceberam a unilateralidade de suas obras e por isso freqüentemente apresentam um lado do fenômeno como o todo. Enquanto suas obras se desenvolviam e seus continuadores seguiam não só as obras mas também a dissociação emocional de seus fundadores, era praticamente impossível perceber onde e como as duas obras se complementam. Agora que elas novamente se aproximam, cabe a nós tentar equacionar sua complementaridade.
  • evidente que não posso abordar assunto tão vasto e complexo nesta conferência, pois a tarefa de rever a Psicanálise à luz da Psicologia Analítica é assunto para muitos especialistas e muitos anos de trabalho, eqüivalendo a uma reformulação teórica de nosso trabalho fundamentada numa Psicanálise Arquetípica. Tentarei por isso apenas mencionar brevemente os pontos fundamentais desta reaproximação.

Acho que o que mais chama a atenção, pois é o eixo central das diferenças das suas obras está no conceito de Self e de Superego. Enquanto Freud se preocupou com o agente repressor introjetado culturalmente numa atmosfera de proibição e culpa, Jung ocupou-se basicamente do instinto criador do homem, fonte instintiva e natural ao mesmo tempo da sexualidade, da arte e da moral. Inerente aos dois conceitos inteiramente opostos está a finalidade dos instintos:

Enquanto que para Freud o instinto sexual busca basicamente o incesto que lhe é proibido e por isso se sublima e todas as atividades culturais, para Jung o instinto psíquico principal é o próprio arquétipo do Self que não só busca mas impele a personalidade a realizar-se plenamente. Muito mais básico que o incesto, seria para Jung a tendência de ultrapassar os pais no desenvolvimento cada vez maior da própria individualidade.

Dificilmente poderíamos imaginar posições mais opostas. De um lado o pai castrador proibindo o incesto e do outro o velho sábio iluminado o caminho da individuação através dos símbolos. Mas se examinarmos bem nossos inconscientes não encontraremos uma dialética quase que permanente entre o velho e o novo? Entre de um lado aquilo que em nós foi passado e por isso hoje é adaptação, aburguesamento ou acomodação e do outro o que quer ser futuro e por isso já é hoje revolução?

A própria mitologia mostra as duas tendências lado a lado, pois se não faltam os mitos onde o pai e o filho, disputam a própria vida entre si, abundam também aqueles em que o herói tem que ultrapassar não só os monstros masculinos como também os femininos e os hermafroditas na busca heróica do tesouro, que no caso de Jung não seria a mãe, mas a própria individualidade.

No meu entender, estes conceitos e símbolos aparentemente em radical oposição, poderiam ser compreendidos por uma psicanálise arquetípica que fosse também existencial e dialética. O velho sábio e o pai castrador podem ser assim compreendidos como os dois pólos do arquétipo do pai. De um lado, o velho sábio, o pai que propicia a transformação e sabe que para a criatividade humana continuar, seu filho precisará ser diferente dele próprio. do outro, o pai conservador, repressivo, tradicional e castrador, exigindo que o futuro seja igual ao passado.

Quero assinalar que as duas obras, tendo a de Freud muito mais, se desenvolveram dentro da mentalidade do patriarcado apesar de já admitindo e descrevendo o hermafroditismo psicológico humano. Foi somente a partir da obra de Melanie Klein que pudemos visualizar a inveja do seio e do útero como proporcional à inveja do pênis, condição essencial para uma dialética psicológica entre o homem e a mulher, em pólos opostos, mas realmente equivalentes.

A unilateralidade da vivência do arquétipo pai apoiou-se externamente em duas grandes tradições do conhecimento na Civilização Ocidental ou seja, a científico-médica (Freud) e a humanista (Jung). Na tradição médica, quanto mais grave e comum a doença, mais atenção ela recebe dos especialistas, enquanto que contrariamente, no humanismo só os mais pujantes e desenvolvidos é que são cultuados.

Após os martírios da Inquisição, a vingança da ciência foi a repressão do irracional e emocional. A equação pessoal era feita para eliminar o emocional, mas como sabemos o emocional não pode ser eliminado e somente reprimido. O prejuízo da repressão da religiosidade na Era Científica se fez sentir na idolatria do “objetivo e racional”, transferindo-se a noção de pecado para o subjetivo e irracional”.

A primeira concessão da ciência ao irracional aparece com a revolução psiquiátrica quando Pinel retira os loucos dos calabouços. A medicina concedia estudar os loucos tratando-os como doentes, mas ao irracional não foi concedida a condição de normalidade e até hoje seu estudo foi sempre mantido cuidadosamente dentro da doença. Quando finalmente a ciência concedeu começar a estudar a percepção intuitiva transconsciente (digo transconsciente abrangendo com isto o inconsciente do próprio sujeito e processos externos ao sujeito que sua consciência não percebe mas sua intuição pode captar) , esta normalíssima função da mente humana que engloba os fenômenos intuitivos telepáticos, videntes e proféticos, o preconceito científico foi de tal ordem que esta percepção foi batizada de Percepção Extra Sensorial e seu estudo incluído na Parapsicologia.

Da mesma forma que o médico se sustenta através da doença, a psicanálise passou também a sustentar-se através dela. Freud assinalou várias vezes esta coincidência como um benefício, sem perceber suficientemente seus malefícios: a psicanálise descobria a psicologia do inconsciente através do tratamento das neuroses. Os mecanismos mais normais foram descritos dentro da patologia com nomenclatura patológica, o que muitas vezes até hoje impede ver sua natureza normal e arquetípica. A própria Anna Freud chamou a atenção sobre esse fato (Freud, Anna – Normality and Pathology in Childhood – ed. International Universities Press, Inc., New York, U.S.A. 1965).

A confusão em que ficou envolvida a descoberta de Melanie Klein das posições esquizoparanoide e depressiva não é excepcional e sim típica desta característica da psicanálise que ao não ser conscientizada tornou-se uma falha metodológica que tudo confunde. Caso, estivesse fundamentada numa psicanálise arquetípica, existencial e de polaridade dialética, Melanie Klein não teria tido dificuldade em reconhecer os mecanismos esquizoparanóide e depressivo como um fenômeno arquetípico normal que o Ego humano assume através da vida na maioria das vezes em que é submetido à tensão conflitiva dos opostos. Não só isso ocorre normalmente, como os próprios mecanismos ou posições são pólos da transformação dos opostos, sendo por isso dialeticamente inseparáveis.

Faltando-lhe esta conceituação da normalidade arquetípica e dialética, Melanie Klein situou estes mecanismos, de início dentro da patologia com nomenclatura patológica. Mas à medida que prosseguia seus estudos, foi verificando que sua freqüência era muito maior do que pensava e até mesmo que ocorriam em todo mundo. e aí foram necessárias muitas publicações por ela própria e depois seus seguidores e até hoje é necessário aprendermos que a posição esquizo-paranoide nada tem a ver com um estado psicótico como o nome indica e que a posição depressiva não é tão depressiva porque é também normal e criativa. Alie-se a isso a insegurança emocional que aparece quando se começa a questionar a terminologia de Melanie Klein e se pensa que se está contra a obra de Melanie Klein e percebe-se a origem da babel psicanalítica que tão freqüentemente ocorre devido à esta falha metodológica de descobrir o normal à partir do patológico. O mesmo e até mais pode ser dito do conceito de sublimação de Freud, da posição esquizóide de Fairbairn e da parte psicótica da personalidade de Bleger.

O que s vê na psicanálise devido a isso, é que um novo conceito é de tal forma ligado ao patológico que adquire quase sempre de início uma conotação de “gravidade”. A seguir têm-se que reconceituar que esta “gravidade” é tão freqüente que não pode ser tão grave assim. Para finalmente reconceituar-se o conceito original como algo normal. Mas, como nessa altura já se publicaram muitos trabalhos mostrando o aparecimento daquele mecanismo como patológico, a marcha a ré salvadora não consegue mais salvar o conceito. O máximo que consegue á “aspear” os conceitos e daí por diante escrever mais trabalhos para explicar que eles não significam o que querem dizer. O prejuízo que este erro tem trazido à psicanálise é incalculável desmerecendo-a inclusive como ciência e como cultura.

Ao declarar que o incesto era o principal desejo da mente humana, que a principal função da moral era reprimi-lo e que a cultura nascia desta repressão, Freud edificou a psicanálise equacionando o Id ao mesmo tempo com o instinto, a doença e o pecado. foi de tal intensidade o equacionamento do Id com o incesto, que a psicanálise por muitos anos restringiu-se à infância, tendência esta reforçada pela tradição científico-médica da causalidade que intensificou a redução do presente ao passado na típica tradição ocidental.

Por sua vez, Jung centralizando suas pesquisas no inconsciente em torno do processo criador de busca da individualidade profunda de cada um, logo cedo descobriu símbolos deste processo nas religiões, nos mitos de todos os povos e na alquimia. Com isso concebeu a teoria dos arquétipos e do inconsciente coletivo.

Estudando os símbolos em tantas culturas, Jung passou a ver a normalidade da mente humana estruturada pelo que de melhor havia em cada cultura. Reconheceu nos grandes místicos e nos artistas os jardineiros das flores do inconsciente e passou a estudá-los profundamente. Reuniu-se com físicos nucleares, filósofos, teólogos, artistas, filólogos e especialistas de quase todos os ramos do conhecimento e com muitos deles abordou os símbolos do processo de individuação em seus campos culturais.

  • evidente que com tais vivências, Jung não podia posicionar-se considerando a cultura como um subproduto da sublimação. Pelo contrário, o depreende-se de sua obra é que a cultura é o sistema de refinarias do petróleo inconsciente.

Parece-me uma dicotomia isto é uma separação de opostos sem dialética e por isso alienada, a posição de que o homem vem ao mundo como um selvagem, um Id em estado puro para ser contido repressivamente pela cultura. Na sua obra “Ser e Tempo” Heidegger mostra o caminho para sairmos da alienação das dicotomias criando o conceito de “Ser-no-Mundo”. Necessitamos ampliar este conceito fazendo-o também arquetípico. Devido à bagagem genético-arquetípica do ser, ele já é um ser potencialmente social ao nascer. De acordo com este posicionamento teórico, a criança não descobre que precisa de pai, mãe e sociedade ao nascer, pois já traz dentro de si arquétipos que lhe impõem de início, entre outras coisas, a busca do seio. O conceito de arquétipo ajuda enormemente a manter-se o conceito de normalidade e mesmo de parte sadia da personalidade na neurose ou psicose, porque conceitua a existência de um potencial instintivo na psique que pode atuar paralelamente à vivências patologizantes para contorná-las e mesmo ultrapassá-las através de uma criatividade natural.

O potencial arquetípico não é acionado todo ao nascer, mas vai sendo desencadeado progressivamente nas várias etapas da vida. Por isso, para Jung o homem nasce uma vez só no corpo, mas muitas vezes no espírito, tantas quantos novos arquétipos forem acionados nas várias grandes etapas de transformação da consciência. As principais são a infância, a adolescência, a idade adulta, o meio da vida, a velhice e a morte.

Para ele a morte também é arquetípica e seu arquétipo é ativado quando o organismo sente o fim da vida, preparando a consciência para mais esta transformação.

Assim sendo, o Ser-no-Mundo humano nunca é simplesmente a síntese de uma relação antitética instinto versus cultura, pois potencialmente ele já traz os pares de opostos cuja dialética marcará sua vida. Esta conceituação de forma alguma predetermina o homem. Pelo contrário, ela impõe que sua consciência seja sempre livre para poder perceber a cada momento a nova polarização dialética criada pelo seu Ser-no-Mundo.

Esta formulação já está presente na psicanálise inglesa quando Bion recomenda o estudo do psiquismo à partir de 3 vértices ou seja o religioso, o estético e o científico. E também na psicanálise americana onde Erikson fala de 3 processos para compreender o ser, qual sejam o biológico, o psicológico e o social.

Nesse caminho, Jung encontrou-se cada vez mais na tradição humanista, e passou a conceber a criatividade da individuação como a função primária espiritual do ser humano. Com isso ligou toda atividade cultural à psicologia normal. Percebeu que toda a criatividade cultural origina-se no inconsciente individual, podendo ser acompanhada por qualquer um, nos seus sonhos e fantasias e sendo sempre expressão do amadurecimento emocional da personalidade. ao ser conscientizada pode trazer um sentido de coerência e significado ao processo de desenvolvimento instintivo-emocional. Ao invés do porquê médico e científico de Freud, Jung usou abundantemente também o para quê (já iniciado por Adler), pois para o instinto de busca, um símbolo não

  • um substantivo de algo que ficou no passado, mas sim um gerador de energia, veículo de algo que a mente quer atingir no futuro. O humanismo, a busca e o para quê levaram Jung ao Oriente onde encontrou sobejamente a ratificação do processo de individuação, enriquecido pela teoria dialética dos opostos sedimentada através de milênios de civilização pelos grandes sábios. Compreende-se com isso fartamente, porque Jung situou o processo de individuação na segunda metade da vida.

Dificilmente poderíamos conceber uma noção do funcionamento e desenvolvimento da mente mais diversa do que nos dois pesquisadores, e, no entanto, uma vez mais, é esta oposição radical que nos aponta o caminho da complementaridade.

Se enfocarmos esta polarização através de uma psicanálise arquetípica, poderemos conceber duas fases no processo de individuação.

Na primeira seria formado o Ego e ultrapassado o incesto e na segunda seria buscada a individualidade profunda. Em ambas o arquétipo do herói, através da atividade criadora lidera o Ego pelos símbolos do desenvolvimento, em meio a uma dialética permanente do Self e do Superego.

Este enfoque permite que a psicanálise seja muito mais pedagógica e diretiva sem ser paternalista, pois a atividade criadora do Self necessita ser conhecida e interpretada tão intensamente quanto a função repressiva do Superego. É necessário conscientizar a transferência de cura (Self) tanto quanto a neurose de transferência (Superego).

A grande resistência que a psicanálise tem oferecido para aceitar e exercer interpretações no nível da criatividade do Self, vem de confundi-la com a tradição médica paternalista.

A tendência de dar remédios para sintomas e conselhos consoladores em medicina, sem examinar muitas vezes o potencial curativo e saudável do organismo doente, chegou a tal ponto que em muitos casos passou a fragilizar ainda mais o organismo quando não cria outra doença que é a dependência do médico e da medicação. Esta tendência invadiu a psiquiatria, principalmente porque antes da psicologia profunda praticamente todas as doenças mentais eram incuráveis. Foi, por conseguinte, perfeitamente compreensível, que a técnica psicanalítica vetasse peremptoriamente a atitude paternalista do médico, tão bem expressa no abandono da roupa branca.

Mas, da mesma forma que a economia procura solucionar o problema do desemprego criando empregos e não dando subvenções assim também, pode uma terapia procurar ativamente conscientizar os processos produtivos do Self quando estes aparecem no curso do tratamento. Um provérbio milenar oriental já havia reconhecido isso dizendo: “se quiser eternizar um faminto, dê-lhe um peixe. Se quiser acabar com a sua fome, ensine-lhe a pescar”. E não é somente falando de pescarias fracassadas que se aprende a pescar.

Os opostos podem formar um todo deformado, monstruoso ou perverso quando são impedidos de se confrontarem dialeticamente. Ao querer evitar um pólo do fenômeno pela repressão ou dissociação, mais cedo ou mais tarde caímos vítimas da sua disfunção. Por isso gostaria de perguntar, se, ao repudiar o uso da criatividade do Self na terapia psicanalítica, a psicanálise não está sendo vítima do paternalismo às avessas que á a castração. Nesse caso, ao evitarmos o paternalismo sem substituí-lo por uma pedagogia dinâmica e dialética estaríamos castrando a atividade do Self de nossos pacientes. Seria o equivalente de transmitirmos a eles uma dupla mensagem, pois falamos em aliança terapêutica, mas sonegamos mostrar analiticamente neles a luta do seu Self pela própria cura. Acabamos assim, fazendo exatamente o que queríamos evitar, ou seja, a fragilização do paciente e a manutenção da dependência neurótica prolongando indevidamente o tratamento.

Acredito que somente uma psicanálise arquetípica possa se separar definitivamente da medicina e ingressar devidamente num campo ao mesmo tempo terapêutico e pedagógico.

Para isso é necessário que se criem faculdades de psicanálise em nível de pós graduação e que os psicanalistas possam ser oriundos de todos os campos culturais e possam depois também atuar em todos os campos culturais não só terapêutica mas sobretudo pedagogicamente. A formação teórica incluiria a parte médica e a cultural em igualdade de condições e se preservando sempre a relação polar dialética entre o doente e o saudável, entre a Medicina e a Cultura.

Surgiria aí naturalmente o grande problema da análise didática e das supervisões na formação dos analistas. O passo inicial para a solução deste problema seria já facilitado pela desvinculação do ensino teórico da parte prática. O segundo passo seria igualar a análise didática à terapêutica com a conseqüente extinção da posição de didata como já se está fazendo na Argentina e na França. Isso ajudaria muito a terminar com as oligarquias que naturalmente se formam nas sociedades quando ali existem cargos hierárquicos definitivos, que acabam por impedir a dialética dos opostos e bloquear as fontes jovens de renovação.

Somente uma posição ao mesmo tempo terapêutica e cultural, sem subordinação médico-terapêutica e com finalidade ao mesmo tempo terapêutica e desenvolvimentista poderia permitir à psicanálise institucionalizar-se tanto quanto precisa para daí exercer realmente sua função no desenvolvimento terapêutico e cultural da sociedade.

Pouco nos adianta reconhecer a utilidade da Antipsiquitria se a usarmos somente para criticar a Psiquiatria. É necessário que Psiquiatria e Antipsiquiatria caminhem lado a lado dialeticamente e usem a psicanálise para se interpenetrarem cada vez mais. Só se concebe raízes numa Antipsiquiatria se ela for fundamentada numa teoria do desenvolvimento emocional normal de uma comunidade e isto só pode ser feito por uma psicanálise voltada para a Educação.

Se o alfa e o Omega da psicanálise é a relação dialética do consciente com o inconsciente no crescimento do Ego humano, sua utilidade em todas as dimensões do Ser-no-Mundo é praticamente inesgotável. O problema é alcançarmos métodos que permitam o seu amplo desenvolvimento e não o contrário, criarmos técnicas que a encarcerem e elitizem, amedrontando os que querem usá-la.